por Regina Evaristo - Advogada Autista
As rodinhas das macas, desgastadas pelo tempo, rangiam em contato com o piso frio e antigo dos corredores do hospital, evocando memórias que estavam enterradas nas profundezas da minha mente. O som áspero e ritmado me transportou imediatamente a um tempo em que, ainda criança, eu era arrastada à força para as alas psiquiátricas, vítima de um diagnóstico que poucos entendiam: autismo. A sensação de impotência, de ser empurrada para um destino desconhecido, voltou com força total, como um fantasma do passado que eu nunca realmente consegui exorcizar.
Enquanto o barulho metálico das macas ecoava pelo corredor, outra memória mais distante, mas igualmente perturbadora, emergiu. Imagens de pessoas sendo levadas para os campos de concentração na Alemanha. A associação foi imediata, como se aqueles corredores, que deveriam ser um espaço de cura, de repente se transformassem em um cenário de horror. O destino de cada paciente, levado em silêncio ou com um murmúrio de resignação, parecia incerto, sombrio. Quantos daqueles que eram conduzidos pelo maqueiro retornariam? Ou seriam como tantos outros, que foram para nunca mais voltar?
Ranulfo, o maqueiro, se apresentou com educação e um sorriso cansado. “Meu nome é Ranulfo, sou o maqueiro”, disse ele com uma gentileza que contrastava com a brutalidade das lembranças que seu ofício evocava. Sua voz tinha um tom de normalidade, de rotina. Era apenas mais um dia, mais uma paciente, mais uma cirurgia. “Vamo dona Ivete, chegou a sua hora”, anunciou com uma calma que, fora daquele contexto, poderia ser reconfortante.
Dona Ivete foi. Eu a observei ser levada, sua expressão uma mistura de aceitação e medo, tão comum em quem já enfrentou batalhas demais. O que aconteceu depois? Não sei. Não sei se correu tudo bem. Não sei se ela voltou com vida. Não sei se a cirurgia foi um sucesso ou um fracasso. O silêncio que se seguiu ao seu desaparecimento pelos corredores era ensurdecedor, um eco da incerteza que permeia todo hospital. Não saber o destino dos outros pacientes, daqueles que compartilham o mesmo espaço, a mesma dor, é uma tortura em si. Fico me perguntando se ela foi "devolvida", um termo que aprendi a temer, que carrega consigo a frustração de um corpo que não aguentou, de uma cirurgia que não se concretizou.
Já estive nas duas posições. Sei o que é ser “devolvida” ao leito, a sensação de fracasso, de um corpo que não conseguiu ir até o fim, como se tivesse falhado em sua missão de cura. A infusão cirúrgica que não se completa por conta de uma pressão arterial descontrolada, uma febre inesperada, uma complicação qualquer que impede o processo. Mas também sei o que é ser considerada um sucesso, como da última vez em que fui ao Centro Cirúrgico. O contraste entre essas duas experiências, entre a frustração e a vitória, é esmagador. Cada cirurgia é uma aposta, uma roleta russa onde a vida e a morte dançam em um fio tênue, e nós, pacientes, somos os espectadores e as vítimas dessa dança.
No hospital, o tempo se dilata, se distorce. Cada minuto se arrasta, carregado de incertezas, de medos que não ousamos verbalizar. A rotina hospitalar, aparentemente previsível e organizada, esconde em suas entrelinhas a imprevisibilidade da vida humana. Ser levado para uma cirurgia, algo tão comum naquele ambiente, para nós, pacientes, é um evento carregado de significados. A maca que nos transporta não é apenas um meio de locomoção, mas um veículo de memórias, de ansiedades, de esperanças silenciosas.
Enquanto estou aqui, no meu leito, observando as idas e vindas, sinto que uma crônica está se formando dentro de mim. A rotina deste hospital, deste nosocômio, é feita de pequenas histórias que se entrelaçam, que se constroem no silêncio das madrugadas, no burburinho dos corredores, no olhar perdido de cada paciente. E eu, uma escritora autista, estou aqui, registrando tudo, percebendo o que muitos não veem, capturando os detalhes que escapam à percepção comum. Porque é assim que funciono, é assim que minha mente trabalha: observando, anotando, transformando cada experiência em palavras, em narrativas que, espero, um dia poderão ser compartilhadas. E assim, talvez, ao compartilhar essas histórias, eu possa dar voz a quem, como dona Ivete, desaparece em silêncio pelos corredores da vida.
Comments