top of page
Buscar

Entre o Som e o Sentido

  • Foto do escritor: Regina Evaristo
    Regina Evaristo
  • 23 de mai.
  • 3 min de leitura

por Regina Evaristo


Retornar a Minas não é só pegar estrada. É pegar lembrança. É sensação de pertencimento.

É descer no calor que tem cheiro de barro molhado e ouvir o silêncio do verde, o som do tempo que não passou.

Cataguases nunca foi tão minha até agora. Antes, era só a cidade vizinha. Hoje, é ninho. É cura.

É onde a dor tem nome, mas também tem colo.

É onde a rigidez que carrego, nas rotinas, nos sons, nos toques, encontram afeto, sem que eu me sinta invadida.

E isso, eu devo à Cíntia. Falar de Cíntia me organiza deveras.

Ela é farol que lança luz nos meus escuros, porque nós autistas vivemos em uma escuridão profunda em um mundo que compartilha normalidade.

Afinal, nesse Brasil diverso de mais de 212 milhões de brasileiros, somos pouco mais de 6 milhões. Nosso fluxo é outro.


Cintia tem a sensibilidade e o conhecimento de quem não pergunta o que está doendo. Ela percebe.

Ela acende meu mundo sem queimar e, com certeza , o mundo de todas as crianças que cuida .


E foi assim que, em um dia qualquer, desses dias em que a textura da roupa me fere e a luz fria do mundo me rasga os olhos, que ela me acolheu como quem já sabia dos espinhos.


Conheci Cíntia em um evento na Câmara de Vereadores de Cataguases, um lugar onde as palavras costumam soar duras, mas naquele dia, algo diferente aconteceu. Eu estava ali para contar minha história: a dor da institucionalização em Barbacena, as marcas da infância e a travessia até me tornar quem sou hoje. O plenário estava cheio: autistas, mães atípicas com os olhos marejados, profissionais da saúde e da educação, e a classe política local, atentos, mas distantes, como tantas vezes costumam ser. No meio de tantos sons, olhares, barulhos do entorno e cadeiras de madeira que ecoavam demais para meus ouvidos sensíveis, a fala de uma mulher me alcançou como se tivesse sido costurada na medida certa para minha escuta. Era Cíntia. Não foi o volume, foi o jeito. O jeito de quem conhece, mas principalmente de quem reconhece. Sua voz era clara, pausada, firme e acolhedora. Um alívio em meio ao tumulto. E foi assim, sem alarde, que ela me cativou. Eu ouvi o coração da Cintia, literalmente.


O NAI , onde Cintia coordena a Equipe Interdisciplinar no atendimento a crianças autistas, tem paredes de escuta, tem cartazes coloridos que não gritam, tem afeto, tem vida.

Não são excesso, são expressão.

E eu, que vivo entre a hipersensibilidade e a lentidão para me adaptar, senti ali o que raramente sinto: calma.

Ali a iluminação parece pedir licença antes de acender.

E eu agradeço, porque viver com o mundo piscando dentro da cabeça não é fácil.

Tudo é limpo, mas sem cheiro agressivo, organizado, pensado, ainda que por vezes em condições inóspitas de trabalho, o amor flui.

Cintia tem cuidado com os detalhes, e o detalhe ali são as pessoas.

Porque para Cíntia , e isso é visível em cada canto do NAI , as pessoas são sempre mais importantes que as coisas.

Um dia entrei no banheiro com o corpo doendo.

Era um daqueles dias em que a gente não se encaixa nem na própria pele. Na porta, um bilhetinho colado me fez sorrir com os olhos e com a alma. Acho até que dei boas gargalhadas.


“Comporte-se como um criminoso. Não deixe vestígios.”


Ali, num pedaço de papel colado com fita, alguém me fez rir. E rir cura.

Assim vejo Cintia, com sua paciência inenarrável e sua escuta treinada nos livros e no amor. O cafezinho ali é quase uma cerimônia de afeto.

Não é só bebida quente: é afago líquido.

Tem xícara limpa, biscoitinhos, e ninguém pressiona se você preferir só olhar ou cheirar o café.


No NAI eu encontrei o contrário do caos: encontrei ritmo, ritual e rotina com carinho.

E isso, para uma mulher autista, ex-moradora de rua, exilada tantas vezes da própria existência, é quase um milagre. É por isso que quando penso em Cataguases hoje, não penso nos paralelepípedos ou no sotaque arrastado das pessoas do “Produtor.”

Penso nos olhos da Cíntia que não julgam, mas perguntam com doçura silenciosa: você quer tentar de novo? Posso ajudar? Como faremos?

E eu, que tantas vezes quis fugir do mundo, respondo internamente: sim, porque aqui, enfim, posso existir com todas as minhas cores e ruídos.

Minhas vivências como mulher autista, já cansada de “guerra”, tal qual Tereza Batista; a sensibilidade sensorial que grita aos cântaros, meu reencontro com Minas e toda a novidade de vida que vivo, são situações que me desregulam, já que meu cérebro se aconchega na previsibilidade; contudo, a força da escuta e o papel iluminador de Cíntia são um oásis nesse meu deserto neurodivergente.

Companheiros de jornadas se reconhecem, eu reconheço você, Cintia!

Gratidão.🌻



 
 
 

Comments


Ligue:

(21)2026-3267

Endereço: 

Rua Marechal Jofre, 96 - Grajaú/RJ - CEP 20560-180

© 2022 Orgulhosamente criado por Velho Chico Digital. 

bottom of page