O som do silêncio
- Regina Evaristo
- 4 de jun.
- 3 min de leitura
Atualizado: 4 de jun.
por Regina Evaristo
A própria raiz da palavra autós, do grego, “de si mesmo”, como definição para autista já carrega o peso do isolamento que me atribuem. Mas o que muitos veem como distanciamento é, na verdade, sobrevivência. O mundo me invade com ruídos que me ferem. Não são apenas sons altos. São sons que cortam, que me rasgam por dentro. O barulho de palmas numa igreja, os gritos de “glória”, os teclados e baterias, tudo isso me exclui, porque fere; porque ouço tudo tal qual um amplificador. Então eu oro sozinha.
Não por falta de fé, mas porque a minha fé precisa de silêncio. Oro pra dentro.
As festas, os restaurantes, os cinemas, os teatros, as lojas de departamentos com suas promoções-relâmpago, bradadas aos berros por locutores de plantão em microfones estridentes, também me excluem. Os plenários, com suas palmas ensaiadas, os simpósios, os cultos, os encontros de trabalho, as audiências ; todos esses espaços me excluem.
São ambientes regados a microfones (ah, os microfones… que para mim soam como megafones). Ambientes onde o som é celebrado, mas a escuta é rara.
Onde o ruído se impõe e minha presença se dissolve na tentativa de suportar o excesso.
E o mundo, sempre o mundo, me pergunta por que ando sozinha. Mas eles não ouvem o que eu ouço. Eu ouço o som da água correndo dentro dos canos, ouço a eletricidade viva nos fios., ouço o caminhar de alguém ainda distante, ou a voz que ainda não chegou, mas já vibra no ar. Ouço uma folha caindo, ouço o arrepio de um animal antes do latido, ouço o cheiro. Sim, há cheiros que têm sons. E também ouço o gosto ; o gosto agride, o gosto fala.
Ouço olhares. Ouço quando um olhar me julga, ou quando me abandona.
Eu ouço o que ninguém mais ouve. Ouço o cérebro pulsando pensamentos não ditos.
Ouço o sangue farfalhar nas veias como folhas em vento seco. Nos elevadores, ouço o tum-tum-tum dos corações alheios, batendo por dentro de peitos que fingem calma. Ouço o som de uma cabeça sendo coçada , não pelo gesto, mas pela inquietação. Ouço o corpo inteiro do outro, mesmo quando ele tenta calar.
Eu ouço o que ninguém mais ouve. Ouço o estrondo agudo dos ossos das pessoas se movendo por dentro da carne, ouço o estômago digerindo silêncio, o cérebro pulsando, o sangue farfalhando nas veias como afluentes de um rio. Ouço o roçar das roupas nos corpos, ouço o sopro leve entre dentes e o cansaço escondido na respiração. Tudo isso me cansa. Cansa ouvir quem não me ouve, cansa ouvir o que ninguém ouve. Ouço o peso do silêncio nos ambientes e o eco da verdade maquiada que mora nas frases ensaiadas. Tudo chega em mim sem filtro. Não existe “meio termo”. É tudo! Tudo junto! Tudo agora!
É uma avalanche sensorial que me mantém à margem de um mundo que me inclui por força de Lei, mas me exclui por ser diferente. Muitas vezes, não consigo falar, porque ouço demais, sinto demais, tudo ao mesmo tempo. E nesse mundo tão barulhento, tão acelerado, tão insensível, quase ninguém me ouve. Meu mundo é cinza; não porque não exista beleza, mas porque é um mundo esgotado de escutar tanto e ser tão pouco ouvida.
É um mundo que aprende, desde cedo, que sentir demais é um risco e que ser demais é um erro, por isso ando sozinha. Não por escolha, mas porque ainda não criaram um mundo onde eu possa existir inteira, sem dor, sem ruídos; com o som do silêncio dos que não compartilham normalidade.🌻

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