por Regina Evaristo - Advogada Autista
Durante uma das minhas caminhadas matinais – prescritas por orientação médica, é bom frisar – decidi entrar em uma imponente igreja no centro do Rio de Janeiro. Meu objetivo era duplo: observar a programação e captar impressões para uma possível crônica.
Imediatamente, como é comum em um cérebro neurodivergente, os detalhes daquele espaço me envolveram. A multidão, os objetos litúrgicos, a mobília intricada – tudo capturava minha atenção. Contudo, foi uma frase em particular que me cativou, resultando neste texto: "Por favor, não coloque os pés no genuflexório."
Para quem não está familiarizado, o genuflexório é uma peça de mobiliário utilizada nas igrejas, geralmente acolchoada, onde os fiéis se ajoelham para orar, como um sinal de reverência e devoção. É um símbolo de respeito, reservado para o ato de se ajoelhar, e não para o simples contato com os pés.
Era uma manhã de sábado, com um sol tímido que insistia em se esconder atrás das nuvens, fazendo com que muitos cariocas permanecessem em suas camas. A praia, normalmente vibrante, estava deserta naquela manhã de inverno, já que qualquer temperatura abaixo de 20 graus é suficiente para os cariocas sacarem seus casacos e botas.
Talvez por isso, aquelas 123 pessoas – sim, eu contei – tenham se refugiado naquela belíssima igreja. O ambiente, adornado com vitrais coloridos e obras de arte ladeadas por mobília de jacarandá e pisos de jatobá, era um espetáculo à parte. Meus olhos se fixaram em uma menina que brincava com um pequeno palhaço, um brinquedo que destoava completamente do ambiente austero e solene.
Enquanto o padre falava – sua voz ressoava como um megafone, mesmo através dos meus inseparáveis fones de ouvido – eu me lembrava da meia dúzia de pessoas em situação de extrema pobreza que vi na entrada. Do lado de fora, esses miseráveis, impedidos de entrar por um segurança, estendiam as mãos em súplica. O contraste me incomodou profundamente. O que as palavras do padre significavam para esses excluídos? Que tipo de fome é pior, a física ou a espiritual?
Permaneci por cerca de 20 minutos, observando cada detalhe: a criança que brincava, os ventiladores teimosos no teto, as velas acesas, os bancos enfileirados, o genuflexório, imponente e impecavelmente conservado. Enquanto eu olhava para aquele objeto, símbolo de reverência e adoração, pensei nos miseráveis do lado de fora. Eles também não podiam "colocar os pés" no genuflexório, nem mesmo na igreja.
Do lado de fora, a vida continuava. O sol preguiçoso, os miseráveis na calçada, o segurança imponente, as grades que separavam os "dignos" dos "indignos", os transeuntes apressados, as buzinas ensurdecedoras – tudo contrastava com a paz aparente dentro da igreja. Desci os três degraus que me levaram de volta à realidade e segui meu caminho. Esqueceria eu o genuflexório?
As observações de um cérebro autista são como mosaicos detalhados, onde cada peça, por menor que seja, compõe um quadro maior. No cotidiano, tudo é intensificado – sons, imagens, sentimentos. A frase no genuflexório, a criança brincando, o contraste entre o luxo da igreja e a miséria do lado de fora – tudo isso ecoa dentro de mim, não apenas como imagens, mas como questionamentos profundos sobre a vida e a sociedade.
Comments