por Regina Evaristo - Advogada Autista
Sou uma mulher autista de 57 anos, nascida em Minas Gerais e moro no Rio de Janeiro há 43 anos.
Um dos momentos mais marcantes da minha vida foram os anos em que sobrevivi a uma infância difícil e dolorosa, enfrentando abusos dentro da minha própria casa.
Morávamos em um vilarejo isolado nas Minas Gerais, sem acesso a água encanada, eletricidade ou qualquer infraestrutura que lembrasse a civilização. Eu convivia com cobras, percevejos, jaguaritacas, tatus e todo tipo de vida selvagem, contudo, a selvageria maior vinha de quem deveria me proteger.
Nossa casa era de sapê, com chão de barro batido, fogão à lenha e esteiras para dormir. Desde muito nova, eu tinha muitas responsabilidades: limpar as fossas, carregar lenha, buscar água nas minas distantes e cuidar dos animais.
As lembranças dessa época, que vão, aproximadamente, dos 4 aos 9 anos, são muito intensas, e envolvem tanto o trabalho pesado quanto o sofrimento que eu vivia, advindos dos abusos sexuais praticados pelo meu pai.
Mesmo passadas quase 6 décadas, ainda consigo sentir o cheiro de sêmem misturados ao odor do álcool que exalava pelos poros do meu pai. Ele abusava de mim e da cachaça, ou pinga, como era chamada.
O peso do seu corpo sobre o meu, frágil e desnutrido, era esmagador.
Eu era uma criança esquálida, magra, com feridas no corpo. Muitas vezes, era castigada por todos, por ser considerada ‘esquisita’. Na verdade, eu era autista, mas ninguém sabia disso. A incompreensão dos adultos em relação ao meu comportamento levou a muitas situações de dor.
Quase sempre, durante os estupros, meus braços e pernas eram amarrados com cipós e seu abuso era impiedoso.
Meu rosto recebia tapas, minha fronte sangrava e os tímpanos recebiam o sonido ensurdecedor dos socos desferidos vigorosamente pelas mãos que deveriam me proteger.
Uma das lembranças mais fortes foi quando minha mãe, em um ato de desespero, me protegeu e pôs fim a parte dessa dor.
Como uma leoa protegendo o filhote ela desferiu um golpe certeiro em meu pai. O sangue que senti sobre a minha face não era o meu, era o dele. Seu corpo enorme e flácido caiu sobre mim inerte.
Houve silêncio. Minha mãe puxou-me e carregou-me no colo. Esse amparo fez toda a diferença e reverberou ao longo da minha existência. A força da minha heroína permanece comigo até hoje.
Ela lavou-me em um córrego, passamos por um mata-burro ( espécie de armadilha, como se fosse um grande ralo de chão para inviabilizar a passagem de bois e cavalos para áreas fora das propriedades de seus donos) e andamos por muito tempo.
Com a idade de 9 anos, fui tirada de casa e levada para a cidade mais próxima a fim de trabalhar como doméstica. Meu pai foi preso e posteriormente internado em um hospital psiquiátrico na cidade de Barbacena-MG, considerado o local do holocausto brasileiro, onde mais de 60 mil pessoas foram mortas por não compartilharem normalidade. Eram os loucos de todo gênero, descritos no Código Civil Brasileiro de 1916, vigente nos anos 1960.
Naquela época, as mulheres e crianças não tinham a proteção que têm hoje. Minha mãe, que era autista e analfabeta, sofreu muito também. Muitos anos depois, consegui um laudo que confirmava seu diagnóstico, mas ela faleceu aos 68 anos, vítima de um infarto, após ter vivido com diversas complicações de saúde.
Meu pai faleceu aos 86 anos, durante a pandemia da COVID19.
Eu, aquela menina que sobreviveu, me tornei mãe biológica, mãe afetiva, advogada, psicanalista, teóloga, cursei outras cadeiras acadêmicas e fundei uma instituição que cuida de pessoas vulneráveis.
Hoje, enfrento outra batalha, lutando contra um câncer, mas, mesmo depois de tudo, ainda acredito em Deus e no amor que podemos encontrar, apesar de todas as cicatrizes.
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